terça-feira, 19 de maio de 2009

finais felizes

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Finais felizes não têm graça nenhuma. Eu gosto é do sofrido, do intangível, do irreal. Meu negócio é a máxima epicurista que o romantismo se apropriou: “Cura as desgraças com a agradecida memória do bem perdido e com a convicção de que é impossível fazer com que não exista aquilo que já aconteceu”. Finais felizes? Pra que? Para todas as histórias ficarem previsíveis, como os filmes de comédia-romântica norte-americanos? Não. Eu quero mais. Eu quero o Nunca Mais.
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A vantagem de lidar com a arte é que se pode levar duas vidas, sem que uma necessariamente interfira na outra. Mário Quintana diz que não se explica um poema. Eu concordo com ele. Se eu disser o que me veio à cabeça enquanto ouço Billie Holiday ou Ângela Ro Ro, e logo em seguida componho um poema, meu casamento feliz acaba por uma bobagem fictícia. Tudo bem, eu posso não ser uma pessoa “vivida”, mas já vivi muitas coisas. E são essas coisas que, guardadas dentro de mim, para serem exorcizadas se metamorfoseiam em arte.
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Onde você acha que Mary Shelley encontrou os sentimentos de “Frankenstein”? Ou como Edgar Allan Poe escreveu “O Corvo”, enquanto sua querida Virgínia nem havia adoecido ainda? Por que você acha que Elis Regina chorou cantando “Atrás da Porta”, sendo que seu marido estava acompanhando ao piano? Como Chico Buarque conseguiu escrever sua obra enquanto esteve casado com a Marieta Severo? Todos os artistas têm amantes inventados a partir de pessoas reais ou de personagens. Ou seja, nunca concretizaremos a paixão. É esse o nosso mote, por que na arte, sofremos o que na vida real não precisamos. Por isso prefiro os finais tristes.
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segunda-feira, 11 de maio de 2009

os outros foram manjericão



Tudo foi muito divertido na vida daquela senhora. Muita arte, muita música, muitos amigos, muitas lutas. Mas Stela decidiu que queria voltar no tempo. Como não tinha como levar sua empreitada adiante, restou imaginar. Lembrou de George. Embora volta e meia lembrasse dele, dessa vez foi diferente. Lembrou de uma forma definitiva. Como seria se tudo tivesse sido diferente?


Tanto tempo atrás, aquele encontro com a turma do colégio, a última partida de baralho, George se levanta e estende as mãos para Stela. E se fosse um novo começo para os dois? A imaginação começou a engrenar. Stela nunca se perdoou por não ter visto as mãos de George e se levantado sozinha. Talvez saíssem para tomar um chope. Conversariam. Ririam juntos e chegaria aquele maravilhoso momento em que os dois, repentinamente sem assunto, se beijariam. E Stela seria feliz para sempre com George. Será?


Stela era ciente do abismo cultural que havia entre os dois naquele momento de suas vidas. Ela adorava um boteco, ele era esportista. Bem, talvez ela não teria começado a fumar. George era pacato, quase tradicional, mas divertidíssimo. Stela quis estudar e sempre se recusou a ser dona-de-casa. Preferiu descobrir o mundo. Passeou pela ficção e realidade. Sua profissão a deu o luxo de ter pretensões internacionais. Gostava de pensar que, se George estivesse com ela, o levaria para todas as viagens. Isso, claro, se ele quisesse ir, engolindo o machismo da época e ser acompanhante de uma mulher em suas viagens de trabalho. E se o amor tivesse sobrevivido a essas circunstâncias, no momento que ele a pedisse em casamento ela largaria tudo. Sua vida seria totalmente diferente.


Como seria a sua casa? Imaginou um jardim com muitas rosas, por causa daquela canção de um disco da Gal, que a fazia lembrar de George: “ele era uma rosa, os outros eram manjericão...”. Talvez uma casa com quintal e quadra de basquete, como nos filmes americanos. Stela percebeu que não teria seus gatos e uma biblioteca espalhada pelo apartamento, mas não faz mal. Ela e George teriam filhos e, claro, envelheceriam juntos.


Mas será mesmo que essa outra vida realmente teria valido a pena? Stela sabe que há pessoas que forjam uma felicidade que lhes falta. Mas seria possível que todas as suas decisões arrojadas, todas as viagens exóticas fossem uma espécie de fuga de tudo o que lembrasse George? Não soube imaginar uma resposta. De repente, uma súbita inspiração veio em sua cabeça e Stela compôs mentalmente o trecho:

Meu espírito,
Careca de saber que os opostos
Só se atraem na física,
Pouparam-me de dor maior,
Sabendo que minh’alma suportaria
Conviver com a ilusão
E não mais que isso.

E depois desse último e derradeiro pensamento, Stela, satisfeita com o que fez de sua vida, morreu em paz.


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terça-feira, 5 de maio de 2009

instruções para abrir um potinho de iogurte

Podemos notar que sempre que compramos embalagens de iogurte, vêm, grudados, seis ou oito deles. Pois bem, o primeiro passo e mais sutil é desmembrá-los. Primeiro, o ideal é dobrar, como se faz com uma folha de papel, um par deles (eles vêm sempre em duas fileiras de 4 ou 3 potinhos; ou, se desejar, 3 ou 4 fileiras de 2 potinhos). Pronto, agora basta apenas quebrar a liga ao meio e teremos duas unidades de iogurtes, soltinhas para o principal: sacudir e depois abrir.

Para abrir o potinho, imagine que a tampa fina, mole e metalizada é uma casca de qualquer coisa. Caso o "abridor" roa as unhas, é bom pedir auxílio a quem não o faça, para conseguir puxar aquela pontinha, que nem sempre vem levantada. Tome muito cuidado nessa parte: caso a tampinha seja puxada com violência, corre o risco de rasgar e o trabalho deverá ser reiniciado em outra ponta.

Com delicadeza, tire toda a tampa metalizada prestando atenção á parte de dentro, que terá uma camada de iogurte grudada. Sem receio, lamba-a e a jogue fora no lixo reciclável. Agora, pegue uma colher e desfrute o seu iogurte! Como faz para comê-lo? ah, isso é tema para outro manual...

Deborah O'Lins de Barros

(inspirado em "Histórias de Cronópios e de Famas", de Julio Cortázar)